sábado, 4 de julho de 2015

Profissão AVENTURA - Piloto


Para entender do que se trata e ler a sinopse, clique aqui.
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Esteban se afastou dos outros meninos pisando firme, apesar de seus pés afundarem e derraparem no terreno lamacento. Estava irritado. Furioso, para falar a verdade. Primeiro, eles haviam tentado deixá-lo para trás naquela caminhada até o brejo. Agora, zombavam abertamente dele. Disseram que ele não conseguiria pegar sequer um sapo, nem se o bicho dançasse sobre a cabeça dele. E a única resposta que ele conseguiu dar foi um desajeitado “sapos não dançam”.

Mas ele mostraria àqueles invejosos. Ia fazer o que nenhum deles tivera coragem de fazer: desobedecer aos adultos, se afastar da margem e ir até o meio do brejo. Com certeza havia muito mais sapos lá. Centenas deles, pulando para cima e para baixo. Ia voltar com um saco transbordando de sapos, e esfregar na cara dos outros. Eles iam ter que engolir suas palavras.

Com a cabeça quente demais para efetivamente procurar por qualquer coisa, Esteban decidiu simplesmente continuar andando por alguns minutos, que logo se transformaram em meia hora. Ou uma hora inteira. Estava ensaiando pela décima vez o que falaria frente os rostos de admiração dos outros quando se deu conta que estava pisando em terreno seco. Mas não parecia ser o final do brejo, apenas um pedaço mais elevado, como uma ilha. Havia uma árvore crescendo ali, e algumas rochas grandes. Seria o local perfeito de onde partir para procurar os sapos ao redor.

Explorando sua nova base secreta particular, Esteban encontrou uma grande fenda no chão, e foi imediatamente atraído por ela. Não saberia explicar o porquê, mas aquela fenda varreu todos os pensamentos sobre os sapos ou os outros garotos de sua cabeça. Deitou-se de barriga no chão, tentando espiar lá dentro, mas não era possível ver muita coisa no meio das sombras. Perdeu noção de quanto tempo passou ali, preso entre a vontade e o medo de descer.

Até que outra coisa decidiu por ele. A terra sob seu corpo se soltou, e ele se sentiu escorregar para dentro do buraco. No momento seguinte, estava estatelado de costas lá no fundo. Todo o ar foi expelido de seus pulmões e sua cabeça atingiu o chão, fazendo-o enxergar luzes e borrões coloridos na frente dos olhos. Tentou gritar, mas só conseguiu emitir um gemido baixo.

Apavorado, Esteban escutou um zumbido agudo ecoando à sua direita. Virando a cabeça com toda a dificuldade do mundo, viu um túnel escavado artificialmente a partir do fundo daquela fenda natural. Não sabia se era uma peça pregada por sua cabeça – que doía como se houvesse sido acertada por uma martelada – mas pensou ter visto uma sombra se movendo no final daquele túnel.

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- Espero que tenham nos enviado um clérigo decente desta vez. - resmungou Lédio pela milésima vez.

- Já falei que você está sendo injusto com o velho Coutinho. - respondeu Diego - Sempre animado, com uma atitude positiva. Não é fácil encontrar clérigos assim.

- Você só gostava dele porque ele bebia tanto quanto você. Já é hora de eles nos darem alguém que tenha estômago para o serviço.

- O velho Coutinho aguentou bastante tempo. Fiquei realmente surpreso quando ele resolveu se aposentar tão de repente.

- Acontece quando a pessoa tem uma das mãos devorada, seu estúpido.

- Bobagem! - Diego descartou com um aceno - Ele podia continuar desempenhando a função dele perfeitamente bem com apenas uma das mãos. Mas e você, Mandii? O que achava dele?

A mulher demorou um tempo para responder.

- Era um velho tarado, mas ao menos não tentou me converter pra sua religião estúpida. Acho que vou sentir falta dele.

- Era um imprestável, incapaz de operar um milagrezinho qualquer. - Lédio deu o veredito - Mas duvido que tenham nos dado alguém muito melhor desta vez.

- Você reclama demais, homem! Mais ânimo! Logo estaremos de volta à ação!

Diego, Lédio e Mandii eram aventureiros. Aventureiros experientes, que já atuavam juntos há anos e conheciam todos os ossos do ofício. Diego Aires era um ex-oficial do exército lusitano - ativo, empolgado, célebre em todos os ringues de luta ilegal de Guanabara e líder do grupo. Lédio de Sá era um mago genial e mal-humorado, que se ressentia de ser mais comentado na sociedade arcanista por sua pele negra que por seu intelecto elevado. Mandii era uma nativa de pele morena - decidida e geniosa - que ajudava aventureiros desde menina e não tinha medo de nada.

Mas eles precisavam de um clérigo. Não apenas porque alguns clérigos podiam ser úteis - operando pequenos milagres e purificando lugares amaldiçoados - mas principalmente para testemunhar e relatar à Igreja da Luz. Esta oferecia recompensas a quem eliminasse criaturas das trevas, mas só confiava na palavra de seus próprios iniciados, fazendo com que todo grupo de aventureiro quisesse ter um. Era um plano da Igreja para ter algum controle sobre a conduta dos aventureiros. Infelizmente, os modos às vezes impetuosos de Diego acabavam afastando todos os clérigos que tentavam trabalhar com eles.

Os três chegaram ao lugar onde deveriam encontrar seu novo companheiro; uma vila cercada inteiramente por uma alta paliçada de madeira - como era comum no Novo Mundo - e que supostamente estava sendo acometida por algum mal de origem sobrenatural. Foram recebidos por um rapaz franzino e loiro, que parecia bastante nervoso.

- Vocês devem ser os aventureiros que o frei Felipe enviou. Eu sou o acólito Cristiano.

Fez-se um silêncio desconfortável por um tempo, finalmente quebrado por Lédio:

- Você só pode estar de sacanagem. Aquele desgraçado nos mandou uma criança para tomar conta?

- Ah, veja bem. - Diego também fora pego desprevenido, mas tentou ser positivo - Ele não é uma criança, é um rapaz. E todos nós começamos jovens nessa carreira.

- Não tão jovens.

- Eu comecei mais nova que isso. - Mandii se expressou - Mas não fui criada em um mosteiro, como uma boneca.

Cristiano estava vermelho como um tomate, e encarava os próprios pés como se fossem a coisa mais fascinante do mundo.

- Nós pedimos especialmente por alguém experiente, Diego. - Lédio estava inconformado - Esse garoto não vai acompanhar nosso ritmo. Vai desistir depois do primeiro trabalho.

- E desde quando você advinha o futuro? Vamos focar no trabalho e dar uma chance ao garoto. Nunca se sabe, é o que eu sempre digo.

- Você diz coisas estúpidas. - murmurou Lédio, mas se deu por vencido. Discutir com Diego era perda de tempo.

Cristiano os guiou timidamente até a pequena taverna da vila. A dona - uma senhora de meia idade, rechonchuda e energética - era também o mais próximo que havia de uma figura de autoridade por ali, e os levou até a casa de uma das vítimas. Era um homem adulto e forte, mas que estava de cama com uma fadiga que simplesmente não ia embora. Sua pele estava pálida amarelada, e ele passava a maior parte do dia descansando. Não dormindo; apenas repousando, como se tivesse acabado de fazer um esforço extremo.

- Já são quinze casos e três mortes desde o começo do verão. - falou a taverneira - E muitos outros têm tido sintomas parecidos, apenas menos intensos. Um clérigo já tentou abençoar a vila inteira, mas não funcionou.

Enquanto isso, Lédio e Mandii examinavam a vítima mais de perto. Pareceram chegar a uma conclusão mais ou menos ao mesmo tempo.

- Uma Lombeira. - Mandii deu o veredito.

- Definitivamente. - Lédio confirmou.

- Então uma benção não adianta de nada. Mas é um serviço fácil. - Diego esfregou as mãos - Perfeito para o rapaz ir aprendendo o ofício.

Cristiano ao menos parecia interessado no trabalho.

- O que exatamente é essa... coisa? - ele perguntou.

- Uma criatura amaldiçoada. Um tipo de bruxa inferior, que causa exaustão em suas vítimas. - Diego respondeu - Muito comum, e costuma atacar com mais frequência nesta época do ano.

- Existe algum pântano ou brejo por perto? - Mandii perguntou para a taverneira.

- O riacho que corre ao lado da vila deságua em um brejo. Alguns rapazes jovens costumavam ir até lá pegar rãs, até que um deles desapareceu e não foi mais achado. Fica a menos de um dia de caminhada.

- Se sairmos agora, podemos chegar lá ainda hoje. - falou Diego - O que estamos esperando?

- Não precisa ser apressado. - retrucou Lédio - Estamos cansados da viagem. Eu bem que gostaria de um descanso.

- Então partimos depois do almoço. Lédio, você pode enquanto isso preparar algumas magias especialmente para essa ocasião?

- Quando eu falei que eu queria um descanso, eu quis realmente dizer descanso.

- Vai preparar as magias ou não?

Lédio suspirou.

- Vou ver o que posso fazer.
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Eles acabaram saindo bem mais tarde do que pretendiam. Era raro ver gente de fora em um lugar isolado como aquele - ainda mais pessoas tão viajadas e interessantes - portanto os moradores mais jovens os cercaram na taverna e os encheram de perguntas sobre o mundo, que Diego teve o maior prazer de responder com as histórias mais exageradas. Já os mais velhos observaram de longe, desconfiados daquele grupo de esquisitos.

Apesar de estar se divertindo, Diego teve o bom senso de não adiar a partida para o dia seguinte, para evitar mais atrasos ainda. Então eles se arrumaram, se armaram e partiram. Diego vestiu uma couraça peitoral simples, um capacete e carregou uma lança com um gancho, além da espada sempre na cintura. Lédio pendurou um arcabuz no ombro e uma porção de frascos e coisas parecidas na cintura e na mochila. Mandii levava um arco comprido, flechas e um facão. Cristiano não possuía nem sabia usar nenhuma arma, mas Diego o emprestou uma faca e um cajado de madeira, só por via das dúvidas.

O terreno era difícil e não havia trilha, portanto eles tiveram que deixar os cavalos para trás e seguir a pé. Mandii ia na frente, escolhendo o melhor caminho, abrindo o mato com seu facão e tentando nunca se afastar demais do riacho que servia de referência. Qualquer um dos outros teria se perdido em questão de minutos, mas ela sabia perfeitamente o que estava fazendo.

Eles praticamente não trocaram mais que meia dúzia de palavras durante as várias horas de caminhada. Conforme Diego explicou a Cristiano, era mais importante gastar o fôlego andando que falando. À noite, os veteranos até conversaram um pouco ao redor da fogueira, mas o novato se sentiu deslocado e fingiu ir dormir cedo.

Na manhã seguinte, Diego aproveitou que Mandii havia se afastado do acampamento para olhar o caminho à frente, e Lédio para fazer suas necessidades fisiológicas, e se aproximou de Cristiano.

- Tudo bem, garoto? - ele perguntou.

- T-tudo. - Cristiano gaguejou no meio de um bocejo. Ele parecia destruído de cansaço. Era magro, mas seu físico claramente não advinha de exercícios.

- Eu posso desacelerar o ritmo, se for melhor para você.

- Não é preciso, juro. – respondeu Cristiano, com um tom de voz que parecia suplicar o contrário.

- Então tá. Mas então, o que o fez optar por esta profissão de aventureiro? Ainda mais tão jovem.

Cristiano levou um bom tempo pensando.

- Não tenho certeza. - acabou respondendo.

- Ora, vai! Ninguém entra nessa sem um motivo.

- Eu... realmente não sei. - Cristiano olhou para o outro lado.

- Sei. - Diego não parecia convencido - Se não quer dizer, tudo bem. Cada um com seus motivos. Eu saí do exército porque não aguentava mais receber ordens de imbecis e covardes. Virei aventureiro à procura de emoção. Lédio abandonou a Academia Arcana porque não era um lugar amigável para alguém com a pele dele. Então virou aventureiro para conseguir dinheiro e financiar suas próprias pesquisas. Já Mandii não liga para dinheiro ou fama. Ela simplesmente cresceu ajudando os aventureiros que passavam por sua aldeia. Faz parte da cultura da sua tribo.

Cristiano apenas assentiu. Era um rapaz calado, mas era visível que estava prestando total atenção.

- Me faz um favor, garoto. Pensa com calma e descobre um bom motivo para virar aventureiro. Você vai precisar de um.
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Ao chegar a um vale, a água do riacho se juntava à de muitos outros e se espalhava sobre o solo em uma quantidade mais alta do que ele era capaz de absorver, formando um grande brejo. Havia pontos onde o solo era seco o suficiente para andar sobre, e pontos que não passavam de armadilhas naturais de lama ou água turva. A vegetação era mais baixa, esparsa e retorcida que a da floresta, e uma fina névoa branca cobria o lugar. As nuvens de mosquitos eram tão densas e volumosas que encobriam o sol.

Assim que deram os primeiros passos sobre o terreno enlameado, os quatro perceberam duas coisas que certamente iriam atrapalhar o trabalho. A primeira era um cansaço repentino; não sono ou sonolência, mas uma fadiga muscular como a das vítimas da Lombeira. Cristiano foi o primeiro a se entregar aos sintomas, sentando-se sobre um tronco caído e enterrando a testa nas mãos. A segunda era a neblina, que os impedia de enxergar mais que alguns passos à frente e parecia ficar mais densa à medida que avançavam.

- Assim não vamos chegar a lugar algum. - Diego concluiu, frustrado - Lédio, achei que você prepararia algo para nós.

- Sinceramente, eu esperava que não precisássemos usar. A fórmula ainda está longe de perfeita.

- A menos que eu tenha sido mordido e não tenha reparado, a pestilência desta Lombeira está bem mais forte que o normal. Então vamos precisar usar.

Lédio se sentou e tirou de sua mochila dois frascos de vidro; um maior, com um líquido azul claro dentro, e outro menor, com um líquido vermelho escuro. Tomando o cuidado de primeiro calçar um par de luvas e vestir um par de óculos de proteção, ele então derramou o conteúdo do frasco menor dentro do maior. Os líquidos não se mesclaram perfeitamente, mantendo uma diferença de tons que se movimentava como um caleidoscópio, mas a mistura começou a borbulhar de forma efervescente. O frasco vibrava levemente.

Lédio ergueu o frasco cuidadosamente e bebeu um gole, antes de passá-lo a Mandii.

- Lembrem-se, apenas um gole cada. E não sacudam o frasco.

- O gosto é terrível, mas não cuspa. - Diego recomendou ao passar o frasco a Cristiano.

O líquido descia como fogo pela garganta, e queimava ainda mais ao chegar no estômago. O calor então se espalhava gradualmente até as pontas dos dedos, e Cristiano percebeu que não conseguia manter as mãos e os pés parados, por mais que tentasse. Suas orelhas formigavam.

- O que acontece se alguém sacudir o frasco? - ele perguntou a Lédio.

- Permita-me demonstrar.

O mago fechou o frasco com uma rolha e arremessou longe. Antes de tocar o solo, o frasco explodiu, criando um breve clarão avermelhado e arremessando minúsculos estilhaços de vidro em todas as direções.

Havia ainda o problema da névoa, e mais uma vez foi Lédio que resolveu. Ele pegou uma espécie de vareta fina coberta com um pó escuro e ateou fogo em uma das pontas. Ao invés de subir, o filete de fumaça se espalhou para os lados em um formato de espiral, afastando tanto a neblina quanto os mosquitos.

Agora, eles eram ao menos capazes de enxergar por onde andavam. Não que houvesse qualquer ponto de referência para ser visto, ou que eles soubessem por onde estavam indo.

- Eu não fazia ideia que o brejo era tão grande. - comentou Diego - Assim levaremos dias vasculhando.

- Pensei que você tivesse perguntado aos moradores da vila sobre a geografia do local, já que passou tanto tempo com eles. - falou Lédio - A chefe disse que alguns deles costumavam vir até aqui.

- Não, não perguntei.

- Então devíamos ter esperado na vila, e tentado matar a criatura da próxima vez que ela atacasse. Como você esperava encontrar a toca?

- Não pensei nisso, para falar a verdade.

- Você nunca pensa. Essa deveria ser sua função, como líder.

- Ou a sua, já que se acha tão inteligente.

- Eu não me acho inteligente. Eu sou.

- Eu acho que estamos na direção certa. - Mandii interrompeu a discussão.

- Por que acha isso? - questionou Lédio.

- Os mosquitos. - ela apontou para cima. Depois de se afastar da fumaça, os insetos se juntavam e voavam todos na mesma direção.

- Deve ser o coração do brejo. - concluiu Diego - Talvez os mosquitos sejam atraídos pela concentração de magia.

Lédio não parecia convencido.

- Não faz sentido. Nós já matamos várias Lombeiras, e nunca vimos um fenômeno parecido.

- Vocês disseram que nenhuma emanava uma pestilência tão forte quanto essa. - comentou Cristiano. Os três olharam para ele, fazendo-o pensar que havia falado alguma bobagem.

- Ele tem razão. - disse Diego - De qualquer maneira, a única maneira de saber é seguindo em frente.
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O que eles encontraram seguindo em frente foi um grande trecho de terra elevada e seca - como uma ilha no meio do brejo - e uma única árvore alta. Fazendo uma busca cuidadosa, encontraram uma fenda estreita que descia íngreme entre as raízes e uma rocha. A fenda parecia natural, mas o fundo era escuro e podia esconder um túnel escavado.

- Talvez seja uma toca. - disse Lédio.

- Com certeza é uma toca. - respondeu Diego.

- Talvez seja a toca da criatura que estamos procurando.

- Definitivamente é a toca da criatura que estamos procurando.

- Só há um jeito de ter certeza. - disse Mandii, antes de largar arco, aljava e mochila no chão, prender uma faca entre os dentes e descer agilmente pela fenda.

Apreensivo, Cristiano segurou o braço de Diego.

- Isso não é perigoso?

- Terrivelmente perigoso.

- Mas... ela não tem medo?

- Ela? Medo? De nada.

- E você? Não fica preocupado? Não tenta impedir?

- Claro que fico preocupado. Mas a Mandii não é o tipo de mulher que te deixa impedir ela de fazer alguma coisa.

- Então é isso? Você fica apenas esperando?

- Eu fico pronto para pular atrás dela caso seja necessário. Até hoje, nunca foi. Ela sabe o que faz.

Ele apontou para a fenda, de onde Mandii estava saindo; suja de lama, mas intacta.

- Tem um túnel escavado lá no fundo. - ela informou - Não segui até o final, mas, julgando pelo som, a Lombeira que estamos procurando está lá dentro.

- Finalmente! - comemorou Diego, voltando a vestir a couraça - Lédio, acredito que você tenha trazido alguma coisa para tirar ela de lá?

- Sempre.

- Então o plano é simples. Você faz ela sair lá de dentro, eu prendo ela contra o chão e você abate com um tiro de arcabuz. Mandii fica na contenção. Cristiano fica por perto, observando.

Todos assumiram suas posições. Eles estavam habituados àquilo; eram profissionais, já haviam matado dezenas ou centenas de criaturas perigosas ao longo dos anos. Ainda assim, a tensão era sempre enorme. Muita coisa podia dar errado.

Depois de carregar o arcabuz, Lédio jogou um frasco de vidro dentro da fenda. Eles esperaram apreensivamente enquanto o gás de espalhava, e apertaram mais firmemente os cabos das armas ao ouvir o grito da criatura: uma espécie de zumbido, como o de um enxame de insetos, muito alto e muito agudo.

- Lá vem ela... Lá vem ela... Lá vem ela e... Agora!

Diego usou o gancho da lança para puxar a criatura para fora da fenda, e a ponta para cravá-la contra o chão.

Cristiano estremeceu e deu dois passos para trás. A criatura tinha forma humanoide, esquelética, com uma pele amarelada, lisa e quebradiça. Seus olhos eram enormes e bulbosos, sua boca era um rasgo cheio de presas afiadas e seu cabelo comprido parecia formado de algas. Ela gritava e se debatia violentamente, espalhando uma espécie de sangue verde e gosmento pelo chão.

Lédio pressionou o arcabuz contra o ombro, mirou com calma e disparou. Com um som de trovão, o cano da arma cuspiu fumaça preta e faíscas vermelhas, além de uma esfera de chumbo encantada que penetrou o ventre da criatura. O buraco de entrada cospia fumaça e cheiro de queimado. 

No entanto, ao invés de morrer, a criatura conseguiu quebrar o cabo da lança e se colocar de pé. Movendo-se em uma velocidade espantosa, passou por Diego e correu na direção de Cristiano - que permaneceu exatamente onde estava, paralisado de medo. Uma rápida sucessão de flechas atiradas por Mandii atrasou a criatura, que ainda assim se arremessou contra o clérigo, derrubando-o de costas no chão.

Diego alcançou os dois e agarrou a criatura por trás, pelo pescoço. Lutando fisicamente contra ela, conseguiu tirá-la de cima de Cristiano e arrastá-la alguns passos. Com um esforço sobre-humano, arremessou-a no chão e se afastou.

Ferida, a criatura se ergueu lentamente, abriu a boca e começou a articular palavras. Sua fala era incompreensível; parecia apenas uma sequência de zumbidos e sons guturais, que uma boca humana jamais seria capaz de produzir. Independente de não compreenderem, os quatro aventureiros começaram a ouvir um som ressoante absurdamente agudo, que fazia a cabeça doer como se estivesse prestes a explodir. Além disso, sentiram os músculos doerem e enrijecerem.

- Vadia. – murmurou Lédio entre os dentes, deixando o arcabuz cair no chão.

Diego puxou a espada da cintura e ensaiou uma investida, mas não conseguia manter o braço erguido nem dar mais de dois passos débeis.

Mandii fechou os olhos, respirou fundo, reuniu os últimos fiapos de força e puxou a corda do arco. Guiada pelos ouvidos, deixou a flecha voar livre. O projétil acertou a Lombeira bem na boca aberta, atravessando sua garganta e fazendo-a engasgar no próprio sangue.

Livre da maldição, Diego se aproximou com um salto e enfiou a sola da bota no peito da criatura, derrubando-a mais uma vez. Cravou a espada em sua barriga, alfinetando-a contra o chão. 

- Afasta! - gritou Lédio.

Diego deu um salto para trás, e o mago arremessou um frasco de vidro que irrompeu em chamas assim que se quebrou. A criatura ainda se debateu um pouco, antes de ser finalmente consumida pelo fogo, deixando para trás a espada cravada em um montinho de cinzas.

Diego caiu deitado no chão, segurando o braço esquerdo. Os outros três se aproximaram correndo e arregaçaram sua manga, constatando que a criatura havia conseguido mordê-lo próximo ao pulso. O ferimento já apresentava uma aparência feia, pestilenta, e o guerreiro estava tremendo e suando frio.

Mandii agarrou Cristiano pelas roupas e o sacudiu com força.

- Faça alguma coisa! - gritou.

Tremendo e suando de nervosismo, o rapaz espalmou as mãos sobre o ferimento e começou a murmurar uma prece ao Senhor da Luz. A princípio, se sentiu ridículo e inútil. Nunca havia operado um milagre antes, e não havia motivo para acreditar que agora seria a primeira vez. Mas em questão de segundos sentiu um calor perpassar suas mãos, e testemunhou o ferimento se fechando miraculosamente diante de seus olhos.

Lédio se deixou desabar, aliviado. Mandii deitou sobre o peito de Diego, que fechou os olhos, mas abriu um sorriso. Cristiano se afastou para vomitar.

Depois de alguns minutos, Lédio deixou escapar uma risada repentina.

- Primeiro dia de trabalho e já salvou um de nós com um milagre. E pensar que eu não queria o garoto no grupo.

- Eu disse para darmos uma chance a ele, não disse? - perguntou Diego - O que acham? Aprovado?

- Sim, aprovado.

- Aprovadíssimo! - respondeu Mandii, dando um beijo na testa do rapaz.

Cristiano simplesmente sorriu e chorou ao mesmo tempo, feliz e aliviado.
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A volta à vila foi um martírio de quase dois dias, mas que valeu o esforço. Eles foram recebidos com banhos quentes, um banquete e muito vinho e cerveja. Depois de alguns copos, Diego subiu na mesa e narrou teatralmente a batalha contra o terrível monstro do pântano, mostrando a cicatriz fresca no braço e recebendo aplausos e gritos entusiasmados da plateia. Caiu da mesa apenas três vezes.

Mais tarde, conseguiu se desvencilhar dos novos fãs para se sentar com Cristiano, que estava sozinho em um canto da mesa.

- Você também é um dos heróis, rapaz! Aproveite!

- Não é meu estilo. - ele respondeu humildemente.

- Tá certo. Em todo caso, eu não te agradeci apropriadamente por ter salvado minha pele.

- Agradeceu mais do que precisava. Pra começar, você só foi mordido porque estava tirando a criatura de cima de mim.

- É, ela correu diretamente na sua direção. - ele assumiu um ar preocupado - Isso foi incomum. E ela também era bem mais poderosa que o normal.

O ar preocupado foi quebrado por um soluço, seguido por risadas. Afinal, qualquer preocupação podia esperar pelo dia seguinte.

- É, um grupo de aventureiros é assim. Um salvando a pele do outro, o tempo inteiro. Espero que você tenha gostado.

Cristiano assentiu com a cabeça, depois ficou sério.

- Eu não devia contar, mas eu nunca escolhi ser aventureiro. Trabalhar com vocês foi uma punição por algo que eu fiz. Frei Felipe disse que essa é a sua última chance. E que, quando eu desistir, a Igreja não vai mais nomear clérigos para vocês.

- E você pretende desistir?

- Sabe aquilo que você me disse, para encontrar um bom motivo para ser aventureiro?

Diego assentiu.

- Meu motivo pode ser... vocês três?

Diego envolveu o pescoço de Cristiano com o braço e abriu um enorme sorriso.

- Parece bom o bastante para mim!
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